Interpretar é traduzir
No sentido comum, traduzir seria a transposição de signos de uma língua para outra, na busca de equivalências entre dois sistemas linguísticos, enquanto interpretar seria a atividade de desvelamento daquilo a que a mensagem se refere, na busca de um contato com o referente designado nas palavras. Essa distinção de operações tem como pressuposto a ideia de que linguagem estipula referências do mundo, no sentido de que o significado das palavras consiste no contato com um objeto extralinguístico. Assim, a tradução consistiria na troca de palavras de línguas distintas, mas que possuam o mesmo referente, ao passo que a interpretação consistiria na ação de encontrar o exato referente, que é o significado enquanto objeto extralinguístico.
Quando abandonamos, porém, essa crença em referentes extralinguísticos, passamos a perceber similitudes entre a ação de traduzir e de interpretar. Com efeito, os referentes do signo podem ser compreendidos também como signo, no sentido de que o significado de uma palavra consiste no seu desdobramento em outras palavras, em um processo de substituição de umas por outras (JAKOBSON, 2010, p. 80). Diz Ferraz Jr. (2009, p. 25), “a diferença entre rio, riacho, córrego, rego ou entre jovem, velho, quente, frio pressupõe fronteiras que não são dadas previamente, mas dependem de articulação linguística (o que é um velho para a criança não será necessariamente o mesmo para um adulto)”. A compreensão de uma palavra que se apresenta implica a remissão para os usos de diversos outros signos que com ela guardam relação de aproximação. Definir uma palavra ou dizer seu significado é atribuir-lhe predicados, ou seja, é atribuir qualidades a um nome, de modo a lhe dar o aspecto de um gênero. Assim, o significado de uma palavra depende da explicação progressiva em termos de outros significados implícitos, até uma série infinita, e essa explicação consiste justamente em atribuir predicados (FLUSSER, 2016, p. 33-34). Nesse sentido, qualquer processo de interpretação ou de busca do significado será também um ato de tradução. Como diz Jakobson, “o significado de um signo linguístico não é mais que sua tradução por um outro signo que lhe pode ser substituído” (JAKOBSON, 2010, p. 80). Logo, interpretar é traduzir.
Dessa forma, não há apenas traduções entre textos de línguas distintas – “tradução interlingual”. Há também traduções entre textos de uma mesma língua, que são processos de interpretação que permeiam a comunicação – “tradução intralingual ou reformulação” (JAKOBSON, 2010, p. 81). Então, na medida em que interpretação pressupõe traduções internas, toda comunicação, que pressupõe interpretações, é composta por sucessivas traduções. As mensagens emitidas pelo orador não são recebidas tal como são pelo ouvinte, pois os códigos são decodificados, o que significa que são traduzidos em palavras do repertório disponível pelo ouvinte. Em outras palavras, a comunicação se desenvolve num processo dialógico de codificação e decodificação, em que as mensagens são elaboradas em códigos, mas reelaboradas – ou traduzidas – pelo ouvinte, a partir de seus horizontes de compreensão, do contexto, de alguns limites da interpretação, de constrições sociais etc. (FERRAZ JR., 2011, p. 105).
Compreender a comunicação como processo de sucessivas traduções permite também entender de que forma a comunicação consiste num processo de adaptação e aprendizado, expandindo os horizontes de interlocução e organização social. O modelo comunicacional clássico tenderia a ver as mensagens verdadeiras ou falsas, na medida em que adequadamente representem seus referentes. Nesse modelo, a plano semântico prepondera. A estabilidade semântica dos signos é condição para uma interlocução precisa. Mas, vista a comunicação na dinâmica pragmática entre codificação/decodificação, o referente não sendo visto como entidade extralinguística, a verdade é então substituída pela efetividade da comunicação conforme certas condições de recepção do significado pelo ouvinte. A verdade é intrínseca à relação comunicacional e suas condições não são pré-definidas ao contexto. Nessa dinâmica, a verdade e o valor dos signos envolvem, a um só tempo, aspectos de criatividade e aprendizado. Quer dizer, na medida em que a mensagem não possui referentes extralinguísticos prontos e acabados, ela precisa ser interpretada pela substituição de signos por outros, o que implica que ela nunca chegará sempre da mesma forma ao seu destino. Cada mensagem, assim, carrega uma dose de significado único, que não se repete, e por isso mesmo possui uma carga intrínseca de inventividade em relação aos esquemas linguísticos conhecidos. De outro lado, a compreensão de cada mensagem, na sua particular significação, consiste também numa adaptação social, ou seja, numa forma de aprendizado sobre novas formas de uso da linguagem.
Enfim, esse modelo de compreensão da tradução interna e da interpretação como um processo interação discursiva implica entender que tanto a codificação quanto a decodificação são ações discursivas. Orador e ouvinte avançam e restringem suas posições na relação intersubjetiva, na medida em que selecionam signos. É o desacordo sobre tais posições que produz, e nesses se constituem, os conflitos jurídicos (FERRAZ JR., 2011, p. 106).
Concepções sobre a tradução
O problema fundamental da tradução, assim como da interpretação, diz respeito às possibilidades e aos critérios da tradução correta. Indaga-se: quando uma tradução pode ser considerada melhor que outra? Existe uma única tradução correta? Trata-se de uma investigação sobre os fundamentos da tradução, sobre a possibilidade de sua correspondência exata, de sua correção. Há ao menos duas posições em lados opostos sobre a questão. De um lado, posições otimistas afirmam a possibilidade de traduções corretas, ao se encontrar palavras que signifiquem exatamente a mesma coisa que a palavra traduzida; de outro, posições céticas entendem que a tradução é impossível porque cada língua comporta horizontes próprios de significação que língua diversa não seria capaz de envolver totalmente. Exploremos um pouco mais.
As posições otimistas quanto à tradução possuem em comum a premissa de que há critérios extralinguísticos de correção, que se impõem a todos irrestritamente. O valor da evidência, empírica ou racional, mostra-se como limite das interpretações, apartando o verdadeiro do falso. A primeira teoria que segue essa perspectiva é a chamada teoria essencialista ou realista, segundo a qual a tradução correta é aquela que corresponde ao exato referente da palavra traduzida. Trata-se de uma herança do platonismo à cultura ocidental a crença de que as palavras relatam objetos existentes por si e que os objetos possuem uma única essência. O pressuposto é de que as coisas possuem uma estrutura própria que independe da linguagem e que pode ser objetivamente descrita pela linguagem. O enunciado verdadeiro, então, não comporta variações ou perspectivas, deve ele relatar a essência própria do objeto. Assim, “a permanência da essência é pressuposta como fundamento da unidade do sentido: é porque as coisas têm uma essência que as palavras têm sentido” (OLIVEIRA, 2006, p. 31). O modelo essencialista pressupõe uma homologia entre o signo e seu referente (RICOUER, 2008, p. 124), de modo que a comunicação não comporta arbitrariedade. Ou a fala é verdadeira ou é falsa, na medida em que se aproxima do objeto descrito. A partir da ideia de que as coisas possuem uma essência intrínseca, é possível formular traduções corretas, verificando as essências a que se refere a palavra traduzida (FLUSSER, 2016, p. 24).
Outra teoria que compartilha da mesma conclusão é a que podemos chamar de nominalista ou convencionalista, segundo a qual as palavras são produto de convenções sociais, e não necessariamente descrição objetiva da essência das coisas. Pressupõe-se que a linguagem é um processo de construção social arbitrária e que os nomes são expressões linguísticas de certas representações mentais. Assim, entre a coisa em si e a palavra estão as representações mentais do sujeito, retratadas em linguagem (FLUSSER, 2016, p. 24). Para comunicar suas representações mentais, os sujeitos convencionam arbitrariamente designações linguísticas, de modo que a comunicação se torna possível quando os mesmos objetos mentais são representados pelas mesmas palavras. Não obstante ser um processo arbitrário, a significação se dá num nível de sistematização social que refuta variações contextuais. Assim, as convenções expressam a forma correta de dizer os objetos pensados, com a mesma pretensão de universalidade dos modelos essencialistas. Disso decorre a distinção saussuriana entre língua e fala, isto é, entre o sistema das convenções linguísticas, estável e abstrato, e a aplicação concreta dessas convenções, variável e contextual. A tradução, portanto, deve consistir na expressão dos mesmos objetos mentais da palavra traduzida, de acordo com às formas convencionais da correta representação desses objetos, isto é, o processo de tradução consiste numa comparação entre duas estruturas convencionais, as quais possuem as mesmas representações mentais.
O problema das posições otimistas reside justamente no pressuposto comum de que há categorias universais de correção, que se impõe pela evidência extralinguística. Essas posições caminham para afirmar a existência de uma semântica universalista, o que parece bastante improvável. A crítica a essa perspectiva perpassa justamente pela crença de que não há realidades extralinguísticas sobre as quais a linguagem faz relatos descritivos, pois a linguagem é uma forma de ação e adaptação, e não de referência a estados de coisas por si sós existentes. A filosofia da linguagem contemporânea fornece os elementos para a crítica dessa perspectiva, ao afirmar que a comunicação efetiva não depende de elementos extralinguísticos, mas, pelo contrário, das condições concretas de codificação e decodificação dos signos. Ou seja, o próprio referente não pode ser visto como entidade extralinguística que se impõe aos interlocutores, é ele mesmo uma unidade linguística (ECO, 2010, p. 16-17). Dessa forma, a referência de um signo corresponde a outro signo, e uma palavra pode compreendida quando definida através de outras palavras, no jogo de substituições. O significado de uma palavra não está num referente fora da linguagem, mas nos predicados linguísticos que se atribuem como definição do significado. Em última instância, isso conduz a que o próprio referente seja também signo (JAKOBSON, 2010, p. 79-ss).
Daí, então, a reação das posições céticas. A primeira delas podemos chamar de teoria contextualista, segundo a qual as línguas possuem horizontes próprios de significação, construídos em contextos particulares de adaptação e pela singular formação histórica de cada povo, de modo que nenhuma tradução é capaz de retratar com inteireza e correção os significados da língua originária. Toda tradução, assim, é apenas o olhar dos horizontes de onde parte o tradutor, isto é, a tradução opera de acordo com os seus contextos de formação linguística. O significado de uma língua A nunca pode ser inteiramente transportado para a língua B, porque cada língua possui seus próprios aspectos contextuais. As palavras são formadas por meio de processos históricos adaptativos, na forma das interações e situações que ocorrem e não se repetem tal como são em outros contextos. Para essa perspectiva, “é o conjunto das relações humanas dos falantes de dada língua que não se pode sobrepor às relações por meio das quais o falante de outra língua compreende a si mesmo ao compreender sua relação com o mundo” (RICOUER, 2008, p. 123). Ou seja, a tradução neutraliza os aspectos contextuais ou culturais da língua originária, para reproduzir os horizontes do contexto da língua do tradutor. Portanto, a tradução correta é impossível.
A segunda das posições pessimistas não decorre propriamente de uma particular teoria da tradução, mas de uma teoria da linguagem e do significado, que podemos chamar de teoria cética ou retórica, ainda mais radical em sua crítica. Segundo essa perspectiva, a tradução não reflete outra coisa senão o arbítrio do tradutor. Não há sequer espaço para os contextos e tradições da língua do tradutor, porque o uso das palavras é intrinsecamente individual, refletindo uma “vontade não articulada” (FLUSSER, 2016, p. 69). Essa perspectiva nega qualquer critério válido de verdade, nem mesmo o histórico/contextual, e afirma a verdade como relato vencedor, isto é, como arbítrio que obtém a adesão dos outros. A tradução, então, reflete as relações de poder que são postas e pressupostas no próprio ato de traduzir, e, ainda mais, isso se opera na contingência não repetível do discurso. Essa perspectiva culmina numa heterogeneidade radical da fala (RICOUER, 2008, p. 121), que nunca pode ser reproduzida tal como é e sem a influência da dominação pelo arbítrio do tradutor, muito menos está sujeita a qualquer critério de correção. Aqui, portanto, vale o ditado italiano: traduttore traditore.
Ocorre que essas posições pessimistas não podem ser aceitas sem restrições. É que essas teorias sucumbem ao fato de que a tradução efetivamente acontece. A vivência das interações linguísticas mostra que, bem ou mal, a tradução é possível e as pessoas não só confiam nas traduções, como, por vezes, conseguem fazer nítidos juízos sobre sua qualidade sem grandes controvérsias. Como diz Ricouer (2008, p. 125), “é preciso admitir: entre uma língua e outra, a situação é mesmo de dispersão e confusão. No entanto, a tradução se inscreve na longa litania dos ‘apesar de tudo’”. Ou seja, mesmo que se negue a possibilidade de traduções exatas, o fato é que, apesar de tudo, sob critérios precários, continuamos traduzindo. Então, além de ser uma circunstância sempre presente nas interações, ela também produz efetivas trocas simbólicas, que, se não são compreendidas em sentido de exata correspondência, podem ser compreendidas em termos de aprendizado pela comunicação. Assim, se a teoria cética peca pelo excesso de crítica ao otimismo quanto ao significado das palavras, a teoria contextualista peca por negar a possibilidade da efetiva interação entre interlocutores e línguas diferentes.
Por isso, tentamos aqui adotar uma posição não extremada entre esses dois polos. Não acreditamos ser possível traduções absolutamente exatas ou por critérios de evidência, dado que o fenômeno da língua é histórico e está ligado às condições uso e adaptação pela fala. Porém, não defendemos a excessiva contingência da língua, que, de tão presa em seus aspectos contextuais de comunicação, não seria capaz de ter seus significados transportados para outra língua. A experiência prova que continuamos sempre traduzindo e nos comunicando, ainda que por critérios precários. Portanto, a tradução é possível, embora não seja exata, o que significa que há parcela do significado que é traduzível, mas há resíduos não traduzíveis, que se fecham na língua originária. Não se poderia negar que há traduções fáceis, em que é fácil encontrar palavras que substituam outras com significado semelhante, mas há situações em que essa substituição não é tão fácil, pois as palavras traduzidas possuem significados que não podem ser transportados por outras palavras da língua de destino.
A tradução, então, consiste num processo de aproximação / aprendizado pela comunicação: ora os horizontes das duas línguas estão bem próximos entre si, ora estão distantes e será preciso que o tradutor desempenhe uma ação adaptativa dos seus horizontes ao do outro. A aproximação explica a parcela traduzível do significado, quando há, de acordo com os usos da fala, similitudes semântico-pragmáticas entre as palavras. Essas similitudes são tão somente aproximativas, isto é, trata-se de “uma equivalência presumida, não baseada numa identidade demonstrável de sentido” (RICOEUR, 1998, p. 128). O aprendizado explica a parcela não traduzível, quando há diferença entre os usos das palavras nas duas línguas, de tal modo que não há similitudes facilmente identificáveis, cumprindo ao tradutor exercer sua criatividade para adaptar sua língua aos horizontes da língua do outro. No momento em que não há similitudes entre os usos, o tradutor realiza um esforço de adequação ou adaptação, não só das palavras, mas do próprio horizonte cultural, e na realização desse esforço ocorre a expansão de seu mundo (FLUSSER, 2016, p. 68-70; PONZIO, CALEFATO, PETRILLI, 2007, p. 157). Em suma, “o resultado mais provável de uma tentativa de tradução é uma compreensão parcial do significado original combinada a alguma incompreensão, em um processo de adaptação mais ou menos criativa de conceitos a um novo contexto” (RICHTER, 2007, p. 24).
Regras pragmáticas e limites da tradução
Defendemos que a tradução é possível, mas que não se fundamenta em critérios de evidência racional nem empírica. Daí que o processo de tradução implica significados traduzíveis, quando há aproximação entre os usos da palavra pelas diferentes línguas, mas também significados intraduzíveis, quando a distância entre as práticas comunicativas é tamanha que não há similitudes facilmente verificáveis. Os significados traduzíveis são decodificados pelo esforço de aproximação, enquanto os intraduzíveis são decodificados pelo esforço de aprendizado. Os significados intraduzíveis podem ser agregados à língua de destino, como novas formas de adaptação, expandindo o próprio mundo do tradutor. Por isso, cada tradução comporta algo de novo e antes inexistente na língua de destino, consistindo num processo de invenção e expansão. Não há tradução absolutamente literal, toda tradução implica criatividade metafórica, sendo que algumas decodificações são mais simples que outras.
Mas como definir se uma tradução é melhor que outra? Como a tradução não consiste numa apreensão cognitiva, mas numa tarefa ou fazer (RICOEUR, 1998, p. 126), ela pressupõe escolha e esforço criativo, assim como responsabilidade. A correção da tradução não obedece a critérios de evidência, mas a criatividade do tradutor lhe impõe obediência a certas regras, o que faz com que a tradução seja um problema ético (RICOEUR, 1998, p. 130). As regras sobre as possibilidades de escolha do significado decodificado pelo tradutor que guiam a ação de traduzir. São regras fundadas no contexto da própria experiência da tradução, isto é, nas interações comunicativas e práticas simbólicas compartilhadas. Isso remete à existência de uma responsabilidade do tradutor, decorrente do próprio papel que assume, conforme as expectativas que os outros criam sobre suas escolhas. É assim, então, que o ato de traduzir já surge regrado, de acordo com as experiências e expectativas dos interlocutores de seu contexto.
A operação pode ser traduzida no seguinte esquema: O texto T¹, formulado na língua L¹, conforme contexto C¹, possui o significado S¹, que é traduzido como texto T², que, de acordo com as regras R¹, R², R³…R?, na língua L², conforme contexto C², decodifica o significado S² (vide DASCAL, 2006, p. 370-371 e 376). Desse modo, a tradução implica a produção de outro texto na língua do tradutor, conforme certas regras pragmáticas de tradução. O significado decodificado nunca será idêntico. Não obstante isso, a inventividade que existe no processo de decodificação está sujeita a a regras pragmáticas de comunicação e aos limites do contexto.
A regra básica e mais importante da tradução é a da fidelidade ao texto, isto é, o tradutor comunica sobre a pressuposição pragmática que reporta a palavra de um outro sujeito, e não suas próprias. Pauta-se, então, na expectativa de que a escolha dos signos não se dá por puro arbítrio do tradutor. O traduzir sempre relata os significados conforme a vontade de um terceiro, que é autor do texto traduzido. Como diz Ricoeur (1998, p. 129), “traduzir é servir a dois senhores, o estrangeiro na sua estranheza, o leitor em seu desejo de apropriação”. A tradutor não fala por si e por isso deve assumir, como princípio ético, que a escolha de significados deve representar aquilo que o autor escolheria. Daí que a melhor tradução é a que possui uma postura fiel ao texto, mesmo quando se trata de inovar sobre ele. Mas disso decorre imediatamente a regra da alteridade da língua, isto é, na ausência de similitudes quanto aos usos da palavra, o tradutor deve se deslocar de seus horizontes de significados e tentar olhar o mundo com os olhos do outro. Isso impõe uma tentativa de compreender as cadeias de sentido do outro, suas práticas linguísticas, estruturas sociais etc., inaugurando um processo dialógico e circular, em que o tradutor interpreta os horizontes do outro através de seu contexto, mas se engaja em renunciar as próprias crenças para hospedar realidades até então inexistentes (PONZIO, CALEFATO, PETRILLI, 2007, p. 153). Assim, os contextos da língua de origem e da língua do tradutor mutuamente se interferem, formulando novas formas de compreensão, que não é nem uma nem outra na sua totalidade.
Mas as regras podem variar de acordo com o contexto. Em alguns ambientes se tolera maior liberdade do tradutor, noutros a expectativa da tradução é mais rígida, exigindo maiores pesquisas e autocontenção do tradutor. O que define a boa tradução é confirmação dos interlocutores (FERRAZ JR., 2008, p. 239), de modo sendo que as regras pragmáticas de tradução têm vigência contextual, e não universal. Como na metáfora dos “jogos de linguagem” de Wittgenstein, as regras de tradução possuem vigência em práticas intersubjetivas, que se reforçam e se atualizam quando e na medida em que são observadas pelos praticantes desse jogo. Como diz Ferraz Jr. (2008, p. 240), “numa comunidade linguística, existem condições, estruturas gerais de possíveis situações discursivas, que sempre aparecem toda vez que alguém fala”. O controle da tradução, então, está nas regras contextuais, não na verificação empírica. Trata-se de uma constrição social, imposta nas relações de controle da fala pelos interlocutores. Há limites para a tradução não porque o texto traz a evidência de seu sentido, mas porque os interlocutores constrangem o tradutor. Essas regras de correção são incorporadas pelo próprio tradutor, que neutraliza suas possibilidades de ação e o faz incorporar certas formas de expressar-se. Por isso, o constrangimento do tradutor é uma forma de violência simbólica (FERRAZ JR., 2008, p. 242), fortemente contextualizada e ligada ao seu ambiente de fala. Não se trata de critérios de verdade universais e atemporais. Por isso, até mesmo as regras da fidelidade ao texto e da alteridade da língua, tão importantes no processo, podem ser relativizadas, a depender das circunstâncias.
Traduzindo normas
O que dissemos até aqui comporta algumas associações com a hermenêutica no Direito. Com efeito, a tradução consiste numa decodificação de palavras em outras, isto é, traduzir é tentar dizer a mesma coisa com outras palavras. Mas essa pode ser também a definição de interpretação, pois interpretar é exatamente “o que fazemos quando definimos uma palavra com outra do mesmo léxico, como fazem os dicionários”, e “também o que fazemos quando reformulamos um argumento que não foi compreendido” (RICOEUR, 2008, p. 131). Assim, a tarefa da tradução é semelhante ao da interpretação. Interpretar uma mensagem é tentar compreendê-la a partir do repertório que temos, a partir de nossa língua. É tentar dizer a mesma coisa com nossas palavras. Aliás, toda comunicação efetiva envolve codificação e decodificação, pois a mensagem nunca chega pronta e acabada para o ouvinte. Ela, a mensagem, é reformulada no contexto de compreensão do ouvinte. Interpretar a lei, portanto, é também traduzi-la. É decodificar seus significados.
Disso decorre que o processo de interpretação das normas não comporta a crença na tradução exata do significado, em termos de verificação empírica ou racional. O significado da lei não pode ser decodificado a partir da essência empiricamente verificada no texto, muito menos na compreensão das convenções sobre objetos do pensamento. O significado decorre do esforço de decodificação do interprete, de acordo com o contexto de interpretação, e por isso não se encontra pronto e acabado. Por outro lado, também não há espaço para o ceticismo total quanto à possibilidade de apreender o significado do texto legal, que nega qualquer pretensão de correção, já que a experiência ordinária mostra que a interpretação ocorre e é, por vezes, razoavelmente criticável.
Podemos dizer, então, que há casos em que a interpretação é possível, quando os significados decodificados da lei são facilmente aceitos. Nesse tipo de situação a tradução é possível porque os horizontes do contexto de interpretação (L² e C²) permitem decodificar o significado (S²) com alto grau de similitude do significado (S¹) do contexto de enunciação do texto interpretado (L¹ e C²). Contudo, também há casos em que a interpretação é tormentosa, porque a tradução não encontra significados facilmente decodificáveis no contexto do intérprete. Nesse tipo de caso, os horizontes do contexto de intepretação (L² e C²) não garantem a decodificação de significado (S²) semelhante ao do contexto de enunciação do texto (S¹, L¹ e C²). Em tais circunstâncias, em que não há similitudes facilmente identificáveis, cabe ao intérprete o esforço de inventividade, para construir adaptações e escolher o significado, e nesse momento entram em jogo as regras práticas ou a ética da interpretação (R¹, R², R³…R?).
Assim, o que possibilita a correção da decodificação não é a evidência do texto, mas as regras pragmáticas de interpretação. São regras de controle intersubjetivo, que se expressam nos critérios de confirmação da decodificação do intérprete. A interpretação, assim como a tradução, se apresenta como uma ação, que já nasce regrada pelos “jogos de linguagem” dos juristas. Essas regras encontram sua vigência nas práticas compartilhadas, que se reforçam e se atualizam em cada ato concreto de interpretação. Não se trata de um imperativo cognitivo, que se impõe pela evidência do texto, mas de um imperativo prático, de uma regra de ação, a qual prescreve a autocontenção do intérprete no Direito. O intérprete acaba incorporando as regras na sua ação, neutralizando a si e submetendo-se ao controle, e assim o faz para que sua interpretação seja reconhecida e confirmada por seus interlocutores. Nisso consistem as regras de ponderação de princípios, os conceitos dogmáticos, os cânones interpretativos, os brocardos jurídicos etc. São, por assim dizer, esquemas de legitimidade prática do discurso.
As regras da interpretação ou a dogmática hermenêutica são operacionalizadas como elementos discursivos de crítica das interpretações apenas quando se tem um caso problemático. Ou seja, as regras da interpretação funcionam justamente para os casos de difícil interpretação, quando não há no contexto do intérprete palavras adequadas para traduzir o texto normativo. Isso não significa que só haja exercício hermenêutico nos casos difíceis, como faz sugerir o brocardo interpretatio cessat in claris. Mesmo na clareza do texto interpretado há atividade interpretativa, já que essa clareza depende de avaliações e suposições pragmáticas. A clareza não é uma propriedade inerente do texto, mas uma decorrência dos contextos. O significado claro é tão somente aquele adequado para a situação, isto é, sobre o qual os interlocutores não divergem. Daí que não é possível dizer a priori se um texto é impreciso ou não, se é traduzível ou não, pois os contextos do intérprete que definem as dificuldades da interpretação. Assim, as regras da dogmática hermenêutica surgem justamente nos casos problemáticos, ou seja, é na imprecisão que surge a inventividade do intérprete, e para refrear essa inventividade que se constituem as regras pragmáticas de comunicação (DASCAL, 2006, p. 344-ss).
As regras não possuem uma existência universal e atemporal, elas também são produtos de ações em contextos específicos. Em nossa tradição, elas costumam ser sistematizadas pela doutrina e pela dogmática hermenêutica, que definem os métodos de interpretação e os conceitos fundamentais do vocabulário jurídico (FERRAZ JR., 2008, p. 250-ss). Ao fazê-lo, a hermenêutica acaba por promover a distribuição de papéis funcionais, na medida em que delimita o campo de ação de determinados interlocutores, dizendo o que podem e o que não podem fazer. A correção da interpretação “depende de uma relação ideológica de poder” (FERRAZ JR., 2008, p. 243), necessariamente contingente. Regras da fidelidade ao texto, por exemplo, tendem a centralizar as decisões fundamentais em órgãos legislativos, enquanto regras que focam na interpretação teleológica ou funcional tendem a fazer expandir o âmbito de ação dos juízes. À medida que a doutrina estabelece as regras da interpretação, ela confere elementos para a correção crítica da fala dos intérpretes, autorizando ou desautorizando-os. Por isso, regras de interpretação não são mais do que organização de comportamentos discursivos em contextos de interação.
No Direito está bastante marcante a ética da fidelidade ao texto, isto é, está presente a ideia de que a fala do orador apenas reporta o que outro disse, e nesse ponto a interpretação jurídica se assemelha com a tradução ordinária. Tanto a doutrina quanto a fundamentação das decisões judiciais estão sujeitas à ética da fidelidade ao texto. Mas essa é uma específica prática que se desenvolveu na cultura jurídica ocidental, que tem base na ideologia de que a interpretação jurídica é uma operação cognitiva não arbitrária e vinculada aos textos legislativos a que se reporta. Frise-se: como qualquer regra de interpretação, a ética da fidelidade ao texto é produto dos contextos de interação. Por isso, em alguns casos pode até ser aceitável entre os interlocutores o abandono da fidelidade ao texto e a expansão da inventividade não regulada por parte do intérprete, enquanto em outros contextos as técnicas de fundamentação atreladas ao texto parecem ser mais aderentes. São justamente os contextos que definem as expectativas e limites do discurso dos juristas, que definem quando uma interpretação pode ser bem-sucedida ou não, pois o sucesso da fala implica certo afinamento com os horizontes de compreensão daquele a quem é dirigida a mensagem (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 20-ss). Em outras palavras, as regras discursivas são variáveis de acordo com os diferentes contextos, a depender das expectativas comportamentais criadas acerca das ações dos intérpretes.
Como consequência da fidelidade ao texto, também é marcante a presença da ética da alteridade da língua entre os juristas. Mas, na cultura jurídica ocidental, o colocar-se no lugar do outro na interpretação das leis se opera na pressuposição do “legislador racional”. Na tradução, cumpre ao tradutor empenhar-se em olhar o mundo com os olhos do outro, no esforço de aprender e expandir seus próprios horizontes, enquanto que no contexto da interpretação jurídica, o intérprete possui certas pressuposições de racionalidade do discurso normativo, isto é, ele deve empenhar-se em relatar as palavras da lei com o máximo de coerência e com maior atenção aos seus propósitos funcionais. Trata-se de um topos do discurso dos juristas que a lei comporta certa a intencionalidade e racionalidade, de modo que ela deve ser lida conforme seus propósitos específicos de enunciação e conforme o tratamento sistemático com outros dispositivos normativos. Dascal (2006, p. 358) diferencia essas duas pressuposições da interpretação jurídica de contexto funcional, quando o jurista se encontra no dever de elaborar discurso de maximização da intencionalidade do sentido da lei, e contexto sistêmico, quando ele se vê no dever de maximizar a coerência do texto em relação a outros textos.
Ocorre que nem a intencionalidade nem a coerência consistem, necessariamente, numa propriedade inerente ao texto, mas sim numa pressuposição do intérprete/tradutor que decodifica a mensagem. A pressuposição do “legislador racional” não passa de uma projeção idealizada das crenças compartilhadas pelos próprios juristas (DASCAL, 2006, p. 365). Desde a Modernidade se cultivou a concepção de que a atividade hermenêutica dos juristas consiste numa operação cognitiva, sujeita ao teste da evidência empírica ou racional, de modo que os métodos de interpretação jurídica possuiriam certo grau de universalidade e proporcionariam os critérios exatos para a identificação do sentido da lei e da “vontade do legislador”. Mas tais regras não passam de pressuposições da comunicação, compartilhadas de acordo com os contextos e expectativas que se formam sobre a fala do jurista. O próprio conceito de legislador no discurso dos juristas apresenta variações. Dascal (2006, 368) vê três tipos de legislador, quais sejam, o legislador histórico, quando se trata de personagens concretos de um contexto passado, “como uma pessoa ou corpo coletivo dotado de algum conhecimento e de uma atitude axiológica mais ou menos determinada, expressa em avaliações”; o legislador presente, enquanto órgão atual que relê a lei enunciada em outro tempo, isto é, uma entidade real cuja vontade é reconstruída no presente como um todo unitário; e, por fim, o legislador construto, compreendido como uma elaboração argumentativa, “que funciona como um ponto de referência ideal para a definição de racionalidade de uma decisão” (DASCAL, 2006, p. 368-369). Essas variações dão mostras de que o sentido de legislador é intrinsecamente contextual.
Disso decorre que a pressuposição da racionalidade do discurso normativo se fundamenta mais no contexto da ideologia conformadora do Estado de Direito Moderno, do que em propriedades inerentes ao texto ou na organização racional da subjetividade humana. A maximização da intencionalidade da lei, incluindo as discussões e variações doutrinárias quanto ao mens legis e mens legislatoris, decorrem da ideologia de doutrinas contratualistas e da autodeterminação da vontade, segundo as quais a vontade da lei é representativa da deliberação majoritária, condição da liberdade cívica. O conceito de propósito da lei ou de vinculação à vontade do legislador é um pressuposto da comunicação jurídica decorrente de um formato político-ideológico concreto, tendo forte relação com os conceitos modernos de democracia representativa e de liberdade como autodeterminação.
Já quanto ao dever de coerência sistêmica da interpretação do texto, também está presente a mesma correlação com o projeto político-ideológico do Estado Moderno, em especial quanto ao conceito de igualdade, que impõe pragmaticamente o dever de tratamento igual entre casos semelhantes. Assim, a busca de coerência sistemática, então, consiste no esforço de fazer com que as diferentes decodificações do texto da lei possuam resultados semelhantes em termos de isonomia, embora o discurso dogmático frequentemente defenda que a unidade do sistema decorre de uma qualidade racional do pensamento.
Isso mostra que as regras da interpretação são ideológicas e contingenciais. Os contextos de interação e as pretensões de organização social pela fala é que definem os contornos da ideologia da interpretação. Dessa forma, a racionalização do discurso jurídico pode servir para favorecer a certeza, a estabilidade e a segurança, como também pode servir à adaptação, abertura, equidade e mudança. No primeiro caso temos ideologias estáticas da intepretação, que enfatizam o contexto do legislador histórico e de elementos sistêmicos, e no segundo temos ideologias dinâmicas, que enfatizam o contexto do intérprete e o discurso das consequências práticas ou do propósito concreto da lei (DASCAL, 2006, p. 377-378). Mas ambos os cenários são marcados pelas projeções intérprete, por suas pressuposições discursivas e de controle realizado por seus interlocutores, de modo que tanto o “legislador histórico” quanto o “propósito da lei” cumprem esse papel de regramento da fala, cuja importância pode crescer ou diminuir a depender dos contextos e das expectativas compartilhadas, pouco importando para isso as supostas propriedades inerentes à lei ou decorrentes de sua leitura imediata. Em suma, “a concepção de racionalidade do intérprete é que, no fim das contas, determinará a interpretação”, o que possui “como referência uma certa noção idealizada, que predomina na tradição jurídica” (DASCAL, 2006, p. 381), mas não sendo mais do que isso mesmo, isto é, não sendo mais do que uma predominância prática em certas tradições.
Referências
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