Artigo

O STF e a criminalização da homotransfobia

Compartilhar
FacebookLinkedIn
Voltar

A sociedade brasileira, formada por inúmeras etnias, segue tão intolerante quanto miscigenada. Em recente pesquisa, o Grupo Gay da Bahia, entidade histórica na luta contra a homotransfobia, apurou que, em 2018, o número de mortes motivadas por intolerância à orientação sexual ou à identidade de gênero, alcançou a marca de 420 pessoas, sendo 320 homicídios (76%) e 100 suicídios (25%). Uma pequena redução de 6% em relação a 2017, quando foram registradas 445 mortes.

 

Não obstante o ínfimo passo adiante, o Brasil segue como campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais.  Calcula-se que a cada 20 horas um LGBT é assassinado ou se suicida, tudo por motivação da LGBTfobia. Isso significa dizer que se matam mais homossexuais e transexuais no Brasil do que nos 13 países que ainda preveem a pena de morte para atos sexuais consentidos entre pessoas do mesmo sexo.

 

Com intuito de combater esse lamentável histórico, é inegável que, mais que uma lei, é preciso uma mudança estrutural na nossa educação e cultura. Contudo, a necessária e concreta evolução não prescinde de instrumentos do direito penal para aplicação dos valores que se necessita promover.

 

Sabe-se que o Congresso Nacional Brasileiro não tem demonstrado qualquer interesse em tratar como crime ofensas e agressões movidas por discriminação a homossexuais e transexuais. Até hoje, apenas um projeto chegou a ser votado, o PL 5003/2001 (projeto de lei que objetivava criminalizar a homofobia), que até chegou a ser aprovado na Câmara, e passou a tramitar no Senado com o número PLC 122/06, mas foi arquivado após tramitar por nove anos sem ir ao plenário. Hoje, ainda há outros projetos em andamento que tratam da criminalização da homotransfobia como a PL 7582/2014. Nenhum anda, porém, em razão da nítida ausência de interesse por parte da grande maioria dos congressistas.

 

Diante da omissão do Congresso e dos dados assustadores acerca da violência contra homossexuais e transexuais, no dia 13.02.19, o STF começou o julgamento de duas ações movidas pelo advogado e professor Paulo Iotti, uma em nome da ABGLT (Mandado de Injunção (MI) nº 4.733) e outra em nome do PPS (Ação a Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26).

 

Nas ações, em síntese, pede-se que o Supremo reconheça omissão e demora inconstitucional do Legislativo em votar projetos de lei que tratem da temática e, enquanto isso não ocorrer, que se reconheça que a LGBTfobia é um crime de discriminação por raça (art. 5°, XLI), na acepção político-social (e não biológica) do termo, enquanto qualquer interiorização de um grupo social relativamente a outro. Este conceito político-social acerca do racismo, inclusive, já foi afirmado pelo STF em famoso julgamento, que considerou o antissemitismo (discriminação contra judeus) como racismo.

 

Nesse aspecto, exige-se a criminalização da opressão de um grupo social a outro, motivada pela orientação sexual ou pela identidade de gênero da vítima, real ou a ela atribuída. Aqui, verifica-se que se inclui, a título de orientação atribuída, também, os casos de heterossexuais que sofrem homofobia e cisgêneros que sofrem transfobia, por serem confundidos com pessoas LGBT, como no caso de um pai e seu filho que foram agredidos violentamente por serem confundidos com um casal homossexual ao se abraçarem, no ano de 2011, em São Paulo.

 

O autor das ações ainda esclarece que o que se pretende criminalizar é a discriminação e os discursos de ódio (que não são punidos pelo Código Penal), daí a importância da procedência das ações. Demais violências e mortes continuarão sendo punidas pelo Código Penal. Portanto, não criminalizar a homotransfobia como se criminaliza outras opressões, implica em uma hierarquização de sofrimentos, o que é inadmissível. Permitir que a omissão do Congresso se perpetue, é permitir a mácula direta de direitos fundamentais de um grupo social vulnerável.

 

Assim, acaso reconheça-se a LGBTfobia como racismo, não será preciso “legislar” e sim meramente interpretar as palavras raça e racismo, observando que a lei (art. 20 da Lei 7.716/89) e a Constituição (art. 3º, IV) diferenciam raça de cor, identificando-as por palavras diferentes. Aliás, interpretar textos normativos, atribuindo-lhes significado, é uma função primária do Judiciário.

 

O julgamento histórico começou na quarta-feira, dia 13.02.19, e o Ministro Relator da ADO nº 26, Celso de Mello, votou no sentido de não conceder prazo para o Legislativo. Contudo, votou por conceder o pedido sucessivo, reconhecendo a aplicação da lei antirracismo em casos de LGBTfobia. Os Ministros Edson Fachin, Alexandre Moraes e Luís Roberto Barroso – únicos votantes até então – acompanharam o Relator. Após os quatro votos, o Presidente do Supremo, Ministro Dias Toffoli, suspendeu o julgamento sem marcar nova data para o retorno.

 

Não obstante a ausência de data para o retorno do julgamento, o que significa dizer que esse imbróglio ainda poderá ser postergado por um longo período, a expectativa é de que o Plenário seja favorável a reconhecer a LGBTfobia como crime racial por (expressiva) maioria. Isso, logicamente, não findará por erradicar a homotransfobia do Brasil (sabe-se que nenhuma lei tem esse poder sem uma verdadeira mudança na cultura e educação de base da sociedade), mas, ao menos, servirá para minimizar os graves danos físicos e psíquicos sofridos pela população LGBT, em virtude da banalização do preconceito.

 

Nara Leandro Cavalcanti, advogada, integrante do Comitê +Diversidade do Serur Advogados

Relacionadas

Artigo

Possibilidades e limites da regulamentação administrativa da Lei de Licitações e Contratos

VICTOR AMORIM
Continue Lendo

Artigo

Aplicação da Súmula 410 do STJ no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis

BEATRIZ COELHO ADRIÃO
Continue Lendo

Artigo

Dignidade humana na vida pré-uterina e controle da liberdade sexual no PL 2524/2024 e no Novo Código Civil (PL 04/2025)

FELIPE VARELA CAON
Continue Lendo