Autora: Beatriz Coelho Adrião
A discussão sobre o reembolso de despesas médicas fora da rede credenciada tornou-se, curiosamente, um dos temas em que mais se distorce o marco regulatório da saúde suplementar.
Em parte, por incompreensão do sistema, e por outro lado também por um certo voluntarismo judicial que, sob o pretexto de “proteger o consumidor” individualmente, termina por fragilizar o próprio consumidor enquanto coletividade.
Tem-se difundido a narrativa de que, se o procedimento é coberto pelo plano de saúde, o beneficiário teria direito a escolher livremente qualquer profissional — e que a operadora deveria reembolsar integralmente o valor pago, independentemente do preço e do prestador. É uma tese sedutora à primeira vista, mas absolutamente incompatível com a Lei nº 9.656/1998, com a regulação da ANS e com a realidade econômico-financeira do setor.
O art. 12, VI, da Lei 9.656/98 não deixa margem para dúvidas: o reembolso é devido, mas “nos limites das obrigações contratuais”, portanto segundo a tabela prevista no próprio plano que serviu de parâmetro para a própria precificação do prêmio pago pelo segurado.
Essa regra não é capricho das operadoras: é a essência da previsibilidade atuarial. Não deve haver margem para criatividade judicial, pois a tabela contratual é o que permite que o plano seja precificado, que a rede seja estruturada, que os custos sejam absorvidos pelo modelo mutualista.
Desconsiderar isso é simplesmente desconsiderar o próprio contrato.
O último relatório da ANS, relativo ao primeiro semestre de 2025, aponta que o índice de sinistralidade média das operadoras atingiu 81,1%. Isso significa que, de cada R$ 100,00 recolhidos em mensalidades, R$ 81,10 são imediatamente destinados às despesas assistenciais.
Diante de números como esse, defender reembolso integral em prestadores livres — cujos preços frequentemente superam em várias vezes os valores referenciais da rede — é ignorar completamente a matemática básica do setor. Se o Judiciário trata a saúde suplementar como se fosse um cartão de crédito sem limite, o sistema entra em colapso. E quem paga a conta? Sempre os próprios consumidores, na forma de aumentos de mensalidade.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem, há anos, promovendo esforços para pacificar a questão: o reembolso integral fora da rede só é devido em situações excepcionais, como urgência/emergência sem acesso à rede credenciada ou falha comprovada da operadora.
O REsp 1.933.552/ES é claro ao reconhecer que limitar o reembolso não viola o Código de Defesa do Consumidor (CDC), evita enriquecimento sem causa e preserva o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Noutro precedente da Corte, o AREsp 2.768.029/PE, ratificou-se que a mera inexistência de profissional específico na rede não cria um “cheque em branco” para custeio irrestrito, determinando que o reembolso seja limitado aos valores previstos na tabela do plano, e não de acordo com o que o prestador de serviço fatura.
A narrativa de “reembolso integral como direito absoluto” também ignora a arquitetura regulatória. A ANS estruturou o setor justamente com base na rede credenciada como eixo assistencial, na regulação econômica de preços e no equilíbrio do mutualismo.
O STF, ao julgar a ADI 7155 e reafirmar a autoridade técnica da ANS, reforçou a necessidade de respeito aos limites regulatórios. O Judiciário não pode “criar” obrigações que o marco regulatório não contempla, sob pena de violar a separação de poderes e minar a segurança jurídica do setor.
A limitação não impede o consumidor de buscar profissionais fora da rede. Ela apenas impede que o plano seja obrigado a financiar valores arbitrários cobrados por prestadores sem qualquer controle regulatório.
Reembolso ilimitado não é proteção ao consumidor — é um subsídio regressivo, que transfere ao coletivo o custo da escolha individual de poucos. Em um setor que já opera com sinistralidade elevada e inflação médica crônica, judicializações que ignoram a lógica regulatória não são decisões de proteção: são decisões que encarecem o acesso à saúde suplementar para todos.
Limitar o reembolso ao valor da tabela não é apenas legal, não é apenas regulatório, não é apenas jurisprudencial. É essencial para que o sistema continue existindo.
Se o debate sobre saúde suplementar quer ser sério, precisa abandonar o romantismo consumerista e encarar a realidade econômica do mercado e das relações contratuais do mundo real. O reembolso limitado é, no fundo, a garantia de que haverá um plano de saúde funcionando amanhã — não apenas para quem litiga, mas para todos os milhões que compõem o sistema mutualista.