Análise

AFAC e IOF-Crédito: jurisprudência administrativa e judicial

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  1. Natureza jurídica do AFAC – Distinção em relação ao contrato de mútuo

O Adiantamento para Futuro Aumento de Capital (“AFAC”), como o nome sugere, consiste na transferência de valores pelos sócios, para que sejam incorporados ao capital social. Por meio dele, é possível transferir recursos para a empresa de forma rápida, já que este ato não depende de deliberação para aprovação. Além disso, é possível que sócios ou acionistas, apesar de desejarem aumentar o capital social da empresa, considerem inadequado fazer isto no presente, seja por razões societárias, como diluição de minoritários e exercício de direito de preferência, seja por questões regulatórias e negociais. Assim, os valores relativos ao AFAC devem ser contabilmente registrados no Patrimônio Líquido, para que sejam convertidos ao capital social em momento oportuno.

No AFAC, o sócio não possui a expectativa de reaver os valores entregues à sociedade, sobretudo nos casos de AFAC irretratável. Nesse caso, os valores deverão ser, necessariamente, destinados ao capital social.

O mútuo, por sua vez, é o empréstimo de coisas que, por sua natureza, podem ser substituídas por outras da mesma espécie. O dinheiro é um bem fungível por excelência. Nessa espécie de contrato, o mutuário é obrigado de restituir o mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade, nos termos do art. 586 do Código Civil.

AFAC e mútuo não se confundem, portanto. Esses contratos cumprem finalidades distintas. As principais diferenças entre esses dois institutos podem ser sintetizadas na tabela abaixo:

AFAC Mútuo
Os recursos entregues possuem destinação específica, que é o aumento do capital social Os recursos entregues não são, em regra, vinculados, e podem ser utilizados a partir da conveniência da sociedade receptora
É contabilizado no Patrimônio Líquido, após a conta de Capital Social, já que a sua natureza é de efetivo aporte dos sócios É contabilizado em conta do passivo, pois representa uma obrigação perante os sócios
Os sócios não possuem a expectativa de receberem os recursos de volta Há, desde a disponibilização dos recursos, a necessidade de devolução

Além disso, não há qualquer previsão legal que estabeleça prazo para conversão do AFAC. Essa providência deverá ocorrer dentro de um intervalo temporal razoável, que dependerá da conveniência dos sócios ou acionistas. Eventual demora para integralização ao capital social não é suficiente para transformar o AFAC em operação de mútuo. A não incidência é reforçada quando a operação é instrumentalizada por meio de AFAC irretratável, pois esta cláusula retira elemento essencial do contrato de mútuo, que é a devolução dos valores para a pessoa jurídica que os disponibilizou.

  1. IOF-crédito

Nos termos do art. 153, inciso V, da Constituição Federal, compete à União instituir o imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários. Com relação às operações de crédito, realizadas por meio de mútuo de recursos financeiros, a regulamentação do referido imposto ocorreu por meio do art. 13 da Lei n° 9.779/99.

Nos termos desse dispositivo, constituem fato gerador do IOF-Crédito os mútuos celebrados entre pessoas jurídicas ou entre pessoa jurídica e pessoa física. Estão excluídas da incidência as operações de mútuo financeiro em que pessoas físicas são mutuantes.

  1. AFAC e incidência do IOF-crédito

As leis tributárias não equiparam o AFAC ao mútuo. Assim como no direito privado, também não estabelece prazo para que a conversão ao capital social ocorra. Apesar disso, a RFB considera que esta providência deve ocorrer no primeiro ato formal de alteração do contrato social ou estatuto posterior à operação. Caso este ato não ocorra, o prazo máximo será de 120 dias, contados a partir do encerramento do período-base em que a sociedade recebeu os recursos financeiros. Esses critérios estão previstos no Parecer Normativo CST n° 17/84.

O referido parecer normativo tratou do IRPJ e da possibilidade de o AFAC ser considerado distribuição disfarçada de lucro. Apesar disso, a RFB considera que os prazos estabelecidos por esse parecer são razoáveis para definir se o AFAC pode ser caracterizado, na verdade, como mútuo.

  1. Jurisprudência do CARF

Por considerarem que o referido parecer é inaplicável ao IOF, bem como por inexistir previsão legal que autorize a equiparação do AFAC ao mútuo, os contribuintes recorrem ao CARF contra a cobrança do imposto. As decisões do CARF sobre a matéria oscilaram nos últimos anos, em razão das mudanças nas regras de desempate de julgamento. Assim, os comentários abaixo sobre a jurisprudência desse tribunal serão divididos em 3 partes: (i) durante a vigência do voto de qualidade; (ii) após o fim do voto de qualidade, em razão da inserção do art. 19-E na Lei n° 10.522/2002; e (iii) retorno do voto de qualidade, por meio da medida provisória n° 1.160/2023.

  1. a) Jurisprudência do CARF durante a vigência do voto de qualidade (até abril de 2020)

O CARF é um órgão paritário, composto por representantes dos contribuintes e da RFB. Até 2020, o empate no julgamento era resolvido pelo voto de qualidade. Neste caso, o voto do presidente do órgão fracionário era contabilizado duas vezes. Como a presidência é sempre ocupada por um representante do fisco federal, a União possuía vantagem nos processos que discutiam temas controversos, onde dificilmente a unanimidade é alcançada. A tributação do AFAC pelo IOF é objeto de acirrada divergência e foi impactado pelo voto de qualidade.

O acórdão nº 3301002.282, de 2014, é considerado paradigma com relação à aplicação do entendimento desfavorável aos contribuintes. Nessa decisão, os critérios temporais estabelecidos pelo Parecer Normativo CST n° 17/84 foram reconhecidos como adequados e aplicados ao caso concreto. Nos termos do voto vencedor, a realização de: “aporte financeiro, dependente de evento futuro e incerto, caracteriza­-se como mútuo, independente da forma como ele tenha sido quitado, se em dinheiro, ações, ou outro bem.”

O voto vencedor do referido acórdão reconhece que o Parecer Normativo CST n° 17/84 trata do IRPJ, e não do IOF-Crédito. Contudo, a fundamentação apresentada nesse pronunciamento permaneceria aplicável, pois teria investigado a natureza do AFAC e definido parâmetros para que esse contrato não fosse utilizado para encobrir o verdadeiro negócio jurídico realizado (mútuo).

A Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF, órgão do CARF responsável por uniformizar a jurisprudência administrativa, também possuía entendimento desfavorável aos contribuintes antes de 2020. No acórdão nº 9303-009.825, de 2019, analisou AFAC que somente foi capitalizado 5 (cinco) após a sua disponibilização. O voto vencedor destacou, ainda, que não foi apresentado qualquer contrato que demonstrasse, de forma clara e irrevogável, o objetivo de aplicar os recursos para o aumento do capital social. O acórdão 3301002.282 foi expressamente utilizado para fundamentar o posicionamento favorável à Fazenda Nacional.

  1. b) Jurisprudência do CARF após o fim do voto de qualidade (de abril de 2020 a janeiro de 2023)

Em abril de 2020, o voto de qualidade foi substituído pelo desempate pró-contribuinte, nos termos do art. 19-E da Lei nº 10.522/02. A partir desse momento, houve uma reversão na jurisprudência do CARF, que passou a afastar critérios como (i) o prazo limite para a capitalização do AFAC (reconhecendo a revogação do Parecer Normativo Cosit nº 17/84), como no acórdão nº 9303-012.913 de 2022; bem como (ii) a necessidade de o AFAC ser realizado de forma irretratável, como no acórdão nº 9303-012.909 de 2022.

O entendimento que prevaleceu no órgão foi no sentido de que “não há que se desenquadrar uma operação como AFAC, enquadrando-a como mútuo para fins de exigência do IOF, sustentando, entre outros, como motivação o fato de o contribuinte não ter observado os requisitos dispostos pelo Parecer Normativo CST 17/84 e IN SRF 127/88, que impuseram, entre outros, a observância de prazo limite para a capitalização dos AFACs. Tais atos, inclusive, foram formalmente revogados(…)”

  1. c) Jurisprudência do CARF após retorno do voto de qualidade (de janeiro de 2023 a junho de 2023)

Em janeiro de 2023, o voto de qualidade foi restabelecido por meio da Medida Provisória nº 1.160/23. A medida não foi convertida em lei e caducou em 1º de junho. Durante sua vigência, não foram julgados muitos casos sobre a matéria. Destaca-se o precedente firmado no acórdão nº 3301-012.379, por maioria de votos, em que foi valorizado o fato de as notas explicativas das demonstrações financeiras da empresa indicarem que o AFAC foi realizado em caráter irretratável. Além disso, antes do início da fiscalização, o AFAC foi integralizado ao capital social da empresa, o que foi considerado prova suficiente de que se tratava de operação societária, não de crédito.

  1. Jurisprudência judicial

No âmbito judicial, precedente recente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (processo nº 0003666-24.2012.4.05.8500) afastou, por maioria de votos, a incidência do IOF-Crédito sobre AFACs. O caso concretou envolveu disponibilização de recursos sem prazo limite para conversão. A integralização do capital social ocorreu mais de dois anos após a entrega dos valores, além de a operação não ter sido formalizada por meio de contrato. Apesar disso, somente 1% do montante transferido retornou para a empresa controladora, fato indicativo da natureza de mútuo dessa parcela. O restante foi efetivamente capitalizado, o que atenderia à finalidade desse negócio jurídico.

  1. Sumário conclusivo

Enquanto o Mútuo é uma operação de crédito, o AFAC é uma operação societária. Somente o primeiro negócio jurídico deve ser tributado pelo IOF-Crédito. Contudo, para a RFB, se a conversão do AFAC ocorrer após prazo estabelecido por normas infralegais (já revogadas), é possível requalificar o negócio jurídico e realizar a cobrança do IOF-Crédito.

No CARF, o entendimento sobre a matéria foi alterado significativamente nos últimos anos, consequência das mudanças nas regras de desempate de julgamentos. Apesar de a última decisão proferida pelo órgão ser favorável aos contribuintes, é cedo para reconhecer a existência de uma jurisprudência contrária à incidência do IOF-Crédito. No Poder Judiciário, os precedentes mais recentes apontam para a formação de um entendimento mais flexível, que afasta os requisitos estabelecidos pela RFB.

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