Em fevereiro desse ano, a Receita Federal do Brasil (“RFB”) publicou a Solução de Consulta COSIT n° 38/2023, em que afirmou constituir receita bruta da empresa concessionária de serviço público de geração de energia o Retorno pela Bonificação da Outorga (“RBO”), o que exigiria a inclusão desses valores nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL. Nesse mesmo pronunciamento, reconheceu a natureza de despesa necessária da bonificação de outorga paga pela concessionária, por ser uma condição ao êxito na licitação relativa à concessão, o que autorizaria a sua dedução na apuração dos referidos tributos.
A RFB acertou com relação à dedutibilidade do pagamento da bonificação de outorga, mas errou ao classificar o retorno desses valores para a empresa concessionária como receita bruta. A gravidade do equívoco na conclusão não supera, contudo, o problema de fundamentação, que detém a capacidade perpetuar o erro em outras questões, em prejuízo à correta tributação da renda. Mas antes de abordar as questões tributárias, é necessário analisar a natureza da bonificação de outorga e da operação que implica o seu retorno às empresas concessionárias de energia elétrica.
O art. 21, XII, “b”, da Constituição Federal estabelece que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica. Nos termos do art. 175 também da Constituição Federal, caso a União opte por ceder a realização dos serviços à iniciativa privada, deverá haver prévia licitação, nos termos a serem estabelecidos em lei.
Em cumprimento à função atribuída à lei pelo referido art. 175, foi editada a Lei n° 8.987/95, que regulamentou o regime de concessão e permissão de serviços públicos. Ao estabelecer os critérios para julgamento de licitações necessárias à celebração desses contratos, o art. 15, II, com a redação dada pela Lei n° 9.648/98, autorizou a escolha da “maior oferta, nos casos de pagamento ao poder concedente pela outorga da concessão”, como um dos critérios para julgamento da licitação.
Com fundamento no referido art. 15, inciso II, da Lei n° 8.987/95, a Lei n° 13.203/2015 alterou parágrafos do art. 8° da Lei n° 12.783/2013, que dispõem, especificamente, sobre a licitação nos contratos de concessões de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Entre as alterações, o § 6° incluiu a maior oferta pelo pagamento ao poder concedente pela outorga como critério de julgamento para escolha das empresas concessionárias do setor elétrico.
Na prática, a partir da Lei n° 13.203/2015, o bônus de outorga cumpriu a função de valor de referência para lances a serem dados em leilão. Vence a empresa que oferece o maior ágio em relação ao valor estabelecido como o bônus. A empresa concessionária vencedora, contudo, recupera esse custo, a partir do Retorno da Bonificação pela Outorga, que é devidamente corrigido. Essa restituição ocorre mediante uma parcela da tarifa de energia elétrica paga pelos consumidores.
Karla Amancio Ismail, ao analisar a bonificação de outorga no setor elétrico , constatou que a sua instituição ocorreu prioritariamente por razões fiscais. De acordo com a autora, sua utilização viabilizou uma arrecadação maior e imediata, já que os valores são pagos pela concessionária à vista, no momento da assinatura do contrato. A medida teria sido fundamental, pois, no período, o Governo Federal amargava significativos déficits. O interesse arrecadatório fica mais evidente quando analisada a exposição de motivos da Medida Provisória n° 688/2015, convertida na mencionada Lei n° 13.203/2015. Ao comentar sobre a proposição do montante relativo à bonificação, afirma que “O Ministério da Fazenda deverá ser ouvido sobre o valor, o prazo e a forma de pagamento da referida bonificação, uma vez que é responsável pelo dimensionamento das necessidades arrecadatórias da União para fins de cumprimento de metas fiscais”.
A autora destaca que esse critério funcionaria como um empréstimo da empresa vencedora da licitação para a União, a ser pago pelo consumidor da energia elétrica, através de parte do valor da tarifa. A comparação ao empréstimo é bastante útil para compreender o funcionamento da RBO, já que no contrato de mútuo a amortização referente à parcela do principal pelo mutuário não constitui rendimento do mutuante, pois há apenas a recomposição do seu patrimônio. A renda existirá somente com relação aos juros vinculados à operação.
Diante do exposto, é possível concluir que o RBO é uma recuperação de despesa incorrida pela empresa concessionária, para obter o direito de prestar o serviço público de geração de energia elétrica. Esse ressarcimento ocorre a partir da inclusão desses valores nas tarifas pagas pelos consumidores, esta sim efetiva receita bruta da empresa concessionária. Mas o fato de o RBO acompanhá-la não suficiente para torná-lo também uma receita.
Apesar de inerente às atividades empresariais, o conceito de receita é controverso. E isto ocorre não apenas no Direito Tributário, mas, também, na principal ciência responsável pelo seu estudo, a contábil. Após analisar diversas definições, Sérgio de Iudícibus conceitua esse elemento fundamental do resultado como “a expressão monetária, validada pelo mercado, do agregado de bens e serviços da entidade, em sentido amplo (em determinado período de tempo), e que provoca um acréscimo concomitante no ativo e no patrimônio líquido, considerado separadamente da diminuição do ativo (ou do acréscimo do passivo) e do patrimônio líquido provocados pelo esforço em produzir tal receita ”.
Para o autor, essa definição é relevante porque ressalta a produção de bens e serviços como elemento inerente ao propósito da entidade. Mas sua proposta não é restritiva, e ao mencionar “sentido amplo” inclui, na definição, também as receitas não operacionais. Além disso, confere importância ao mercado, que atribui valor às trocas dos bens e serviços produzidos através dos seus mecanismos de preços. A necessidade de essa expressão monetária acrescer o patrimônio líquido indica, por sua vez, a impossibilidade de meras entradas, que apenas recompõem o ativo, serem consideradas como receitas.
Apesar de teses que alegam diferenças inconciliáveis entre o Direito e a Contabilidade, a definição acima é bastante semelhante à construção jurídica do conceito de receita. O Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE n° 606.107, julgado a partir da sistemática da repercussão geral, reconhece que “quanto ao conteúdo específico do conceito constitucional, a receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições […]”.
Das duas conceituações acima, há a exigência de haver um ingresso positivo, novo, e que acrescente o patrimônio líquido. Não há no conceito de receita, seja jurídico ou contábil, espaço para meras recuperações de despesas.
Com relação aos efeitos contábeis do RBO, a empresa consulente informou que reconhecia esses valores no ativo financeiro, já que este outorgava o direito incondicional de receber caixa. Na medida em que faturava a Recita Anula de Geração (“RGA”), composta por custos regulatórios, manutenção, administração, remuneração e do próprio RBO, creditava a conta de ativo financeiro (reduzindo) e debitava o montante relativo ao RBO na conta de contas a receber (aumentando), ambas no ativo e sem trânsito pelo resultado. Assim, apenas parte dos valores efetivamente novos e que constituíam contraprestação pelos serviços prestados eram lançados no resultado do período. Este era o caso dos montantes relacionados às atualizações do ativo financeiro.
Esses lançamentos demonstram que o RBO não representava qualquer riqueza nova, já que apenas transitava de uma conta no ativo, para outra conta também no ativo, sem alteração de valores. Ocorria o que Ricardo Mariz de Oliveira chama de permutação patrimonial, em que há apenas o deslocamento de uma mesma riqueza dentro de um mesmo patrimônio, sem qualquer acréscimo ou decréscimo, como aconteceria no caso das mutações patrimoniais.
Esses valores não podem, portanto, serem considerados receitas e não devem, em regra, compor as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL. A bonificação de outorga é verdadeira despesa, incorrida com o objetivo de viabilizar receitas futuras. O seu retorno à empresa é mera recuperação de custo, que não deverá ter efeitos tributários.
Apesar desse esclarecimento, contrários à tributação do RBO, destacamos que, em determinadas situações, esses valores poderão ser incluídos nas bases de cálculo dos tributos sobre o lucro. Nos termos do art. 53 da Lei n° 9.430/96, os custos e despesas recuperados deverão ser adicionados às bases de cálculo do IRPJ e CSLL, salvo se comprovado que as despesas recompostas não foram deduzidas no período em que incorridas. Nesse caso, a fundamentação da tributação não é a natureza de receita do montante recebido, mas sim para neutralizar o efeito da dedução da despesa em momento anterior. O intuito é evitar que o contribuinte se beneficie duplamente, e de maneira injustificada.
Essas observações são especialmente relevantes para o presente caso. Como reconhecido pela RFB, o bônus de outorga é uma despesa necessária e pode ser deduzida da base de cálculo do IRPJ e CSLL. Esse fato é reconhecido pela própria empresa consulente (apesar de discordar sobre o acerto da medida) que menciona a possibilidade de reconhecer o bônus de outorga como ativo financeiro, e amortizá-lo a partir de lançamentos a débito em conta de resultado contábil; as contrapartidas ocorreriam a crédito no ativo financeiro. Essas despesas de amortização seriam apropriadas durante a execução do contrato, em contrapartida às receitas auferidas, conforme determina o regime de competência. A consequência seria, ao final, a redução das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.
Contudo, ao invés de definir a tributação do RBO a partir da existência de dedução do bônus de outorga em algum período passado, a RFB se limitou a afirmar que “[…] como a parcela referente ao retorno de bonificação pela outorga recebida pela concessionária compõe a receita anual de geração, receita operacional da consulente, tal montante deve ser computado na receita bruta auferida pela pessoa jurídica […]”.
Com isso, a RFB adotou uma postura simplista e reducionista sobre o conceito de receita, tanto na esfera contábil como na jurídica. Ao admitir que todo e qualquer valor faturado por determinada empresa constitui receita, independente da sua real natureza, o órgão estabelece um precedente perigoso. É conhecido que os empreendedores, em sua inerente criatividade para adoção de novos modelos de negócios, faturarem notas, cujos valores pertencem apenas parcialmente a eles. Dentre o montante, é comum existir receitas de terceiros, ou recuperação de despesas adiantadas em benefício do cliente, que por razões de praticidade foram arrecadados no momento da emissão da fatura.
Essa fundamentação apresentada na Solução de Consulta COSIT n° 38/2023 é, portanto, um risco não apenas para as empresas concessionárias de energia elétrica, mas para todos os modelos de negócios em que, por alguma razão, somente parte dos valores faturados são de titularidade do contribuinte. O tratamento adequado demandaria enfrentar o tema a partir das regras de recuperação de custos e despesas, com a não tributação condicionada ao atendimento dos requisitos do art. 53 da Lei n° 9.430/96, já mencionado.
Assim, apesar de a RFB estar parcialmente correta nas conclusões, está integralmente equivocada na fundamentação. E a fundamentação importa, e muito. É a partir dela que equívocos são perpetuados, ainda que diante de situações fáticas diferentes. Espera-se que este não seja o caso.
[1] ISMAIL, Karla Amancio. Uso da bonificação por outorga como política fiscal: leilão ANEEL 1/2017. Coletânea de Pós-Graduação, v. 4, n. 12. Tribunal de Contas da União. 01/01/2019.
[2] IUDPICIBUS, Sérgio de. Teoria da contabilidade. Gen Atlas. 12ª edição.
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