Márcio Deoclécio da Silva (Serur Advogados)
Para falar da importância na valorização de equidade racial, preciso voltar 16 anos.
Era final de 2003, eu tinha 17 anos. Oriundo de uma periferia da cidade de Recife, filho de mãe solteira, eu estava no ensino médio e fazia “bicos” em um lava jato nas proximidades do meu bairro. Nessa época, tinha um cliente assíduo que gostava do meu trabalho. Alguns meses após conhecê-lo, ele me questionou se eu tinha interesse em um emprego fixo. Era o que eu mais queria na vida, porém, naquela época, a expectativa de vida não era das melhores.
Ele então me pediu um currículo e disse que me ajudaria arrumar um emprego. Após um tempo, fui convidado para a minha primeira entrevista, no Hospital do Espinheiro. No dia, estava muito nervoso, não consegui a vaga.
Meses depois, uma nova entrevista, dessa vez, em um escritório jurídico de cobrança, no qual meu cliente do lava jato atuava. Respondi diversas perguntas na entrevista, porém, uma ficou marcada: “O que você almeja para sua vida?”.
Dias depois, recebi a notícia de que tinha conseguido a vaga e começaria como estagiário, no dia 01 de março de 2004. Fico imaginando quantos “eus” não existem no Brasil e no mundo.
Muita gente questiona o motivo de eu não ter me dedicado completamente aos estudos. Na maioria das vezes existe a necessidade de trabalhar para se manter ou ajudar nas despesas de casa. Era normal para mim e muitos amigos jovens da periferia chegar em casa após a escola e ver a geladeira vazia.
Para se tornar alguém você precisa estudar e isso requer dedicação, prioridade e tempo, mas não existe tempo para fome. Pode parecer fora da realidade de muitos, mas para se dar bem nos estudos é necessário ter “uma base”, uma estrutura. Quantas vezes fomos à escola pensando mais no lanche do que em estudar? Como pensar em qualificação ou ir em busca de um futuro estável, se você tem que correr atrás do jantar ou do almoço?
Muitas vezes o que falta é uma oportunidade. De onde venho são milhares de jovens que passaram ou passam por dificuldades como: precariedade no ensino público, dificuldade de acesso ao ensino privado a, necessidade de trabalhar para sustentar a família, entre outros.
As periferias estão cheias de jovens negros e pardos que tem sonhos e possui determinação, porém, com a desestrutura financeira e de estudos, cria-se uma barreira para a maioria e faz com que a expectativa caia por terra.
Há 9 anos, no mês de novembro, o dia 20 é celebrado o “Dia da Consciência Negra”, um dia de conscientização. Mas, apesar dele, ainda vemos racismo e os dados mostram que negros em liderança no mercado de trabalho é algo raro de se ver.
Uma pesquisa recentemente publicada no G1 mostra que menos de 5% dos negros possuem cargos de gerência ou diretoria, ou seja, uma parte ínfima. De acordo com o levantamento, a maioria dos pretos e pardos ocupam posições operacionais (47,6%) e técnicas (11,4%) – percentuais superiores aos relatados por brancos, indígenas e amarelos.
“Detectamos que há um racismo estrutural, um racismo velado e que acaba prejudicando a justa inserção da população negra no mercado de trabalho” – critica Batistela. Existe uma estrutura e história sofrida por trás dos números que, infelizmente, nos deixam “atrasados”, e existe uma luta constante para quebrar esse paradigma.
Em dezesseis anos de trajetória profissional, apenas hoje eu vejo o tema sendo discutido e abordado dentro das empresas e escritórios. Atualmente, o escritório que faço parte, Serur Advogados, tem o Comitê +Diversidade, grupo voltado para abordar o tema Diversidade e Inclusão, dando importância não só pauta de valorização da equidade racial, mas na diversidade como um todo.
Trazer pautas culturais de diversidade, empoderamento e inclusão, mantém um ambiente de trabalho mais produtivo, inovador, com qualidade e sucesso. As empresas precisam começar a falar, não só a conscientizar seus colaboradores, mas também incluir negros no quadro de profissionais. Com essas ações, acredito que a equidade caminhará na direção certa, mesmo sabendo que virá a longo prazo.
Por fim, não poderia concluir esse texto sem mencionar um trecho de uma das músicas que reflete bem sobre os fatos narrados:
“Eu sei, sei cansa
Quem morre ao fim do mês
Nossa grana ou nossa esperança
Delírio é equilibro
Entre o nosso martírio e nossa fé
Foi difícil contar migalha nos escombros
Lona preta esticadas, enxada no ombro
E nada vim, nada enfim
Recria sozinho
Com a alma cheia de mágoa e as panelas vazias
Sonho imundo só água na geladeira
E eu querendo salvar o mundo
No fundo é tipo David Blaine
A mãe assume, o pai some de costume
No máximo é um sobrenome
Sou o terror dos clones
Esses boys conhecem Marx
Nós conhecemos a fome
Então serra os punhos sorria
E jamais volte para sua quebrada de mão e mente vazias
Quem costuma vir de onde eu sou
Às vezes não tem motivos para seguir
Então levanta e anda, vai, levanta e anda
Vai, levanta e anda
Mas eu sei que vai, que o sonho te traz
Coisas que te faz prosseguir
Então levanta e anda, vai, levanta e anda
Vai, levanta e anda, vai, levanta e anda
Somos maiores, nos basta só sonhar, seguir.”
(Autor: Emicida).
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